quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Os grilhões do passado



Artur e Rafael eram amigos desde as primeiras horas de vida. Nasceram no mesmo hospital com vantagem para o primeiro em dois meses. Por coincidência, os pais de ambos moravam na mesma rua. E, pela amizade dos dois casais, seus filhos acabaram matriculados no mesmo colégio. Só que, como a gente vai crescendo, eles também foram e se afastaram. Até que Rafael, já formado e trabalhando como arquiteto, foi demitido do escritório de onde trabalhava. Alegaram contenção de gastos e todo aquele blá, blá, blá que não interessa a essa história. Vivendo de pequenos projetos aqui e ali, mudou-se para o velho bairro, para onde foi seu amigo depois do divórcio. Voltaram a ser vizinhos e se encontravam frequentemente para assistir o futebol nosso de cada dia na televisão. Numa dessas, o papo enviesou para o passado.

Artur – Você voltou encontrar alguém do escritório que trabalhava?
Rafael – Há dois dias encontrei todo mundo. Precisei ir lá para pegar algumas coisas que esqueci.
A – E aí, qual a reação, sua e dos outros?
R – Cara, foi estranho, muito estranho como uma ruptura numa parte específica de sua vida faz você pensar em tudo que te cerca, que aconteceu com você.
A – Ainda não tô entendendo...
R – Foi uma volta ao passado, mas estranha, bem diferente dessas coisas que a gente vinha lembrando da nossa infância e adolescência. Eu entrei, falei com as pessoas, fiquei olhando para todos os cantos daquele lugar e vi que não me encaixo mais ali. Assim como não me encaixo num monte de coisa que fazia parte da minha vida e eu continuava a querer forçar a barra.
A – Vai que, inconscientemente, você chamou pela demissão.
R – Pode ser isso ou simplesmente um sopro do destino para que eu me libertasse de outras coisas lá de trás que sempre me acorrentavam. A sensação que tenho é que eu estava preso em grilhões e, de repente, explodiu uma bomba e me deixou livre. Acredito que nada na vida acontece por acaso e de alguma coisa temos que tirar algo.
A – E dessa você está tirando lições sobre o passado.
R – Sim, e principalmente minha relação com ele. Saca aquelas coisas que psicólogos e esses estudiosos do comportamento humano falam sobre a zona de conforto? Pois era isso que se passava, e acho que ainda passa, comigo.
A – Também tem a ver com suas relações amorosas, né?
R – Sim, e muito mais do que com o trabalho. Você lembra que meus namoros todos foram um vai e volta quase sem fim.
A – Eu até brincava que você parecia o espírito que não queria se separar do corpo.
R – E a metáfora se encaixa perfeitamente. Era meu porto seguro, meu umbigo, quase como um útero de mãe, que no final das contas é o lugar mais seguro e onde ficamos menos tempo em nossas vidas. Parecia que se eu largasse aquilo não duraria 24 horas. Aí ficava me torturando quase sem fim até que se iniciasse outro ciclo vicioso.
A – Entendi. E como o trabalho não é uma mulher que você pode convencer a voltar, o choque da quebra te fez colocar tudo isso na mesa e questionar.
R – Foi. Percebi que a vida inteira sempre olhei para trás. Talvez seja por isso que eu seja meio lerdo. Meus pés andam numa direção e meus olhos para a direção contrária.
A – Mas você não pode ser tão radical e sair criticando tudo e pondo a culpa nisso por tudo que você tem hoje. Tenho certeza de que várias coisas no teu passado foram felizes.
R – Claro que foram. O problema é a forma com que me relaciono. Como se aquilo fosse o centro de meu universo. E não é, não foi e tão pouco será. Eu me deixo ficar preso. Perdi muito, muito tempo com isso. E o tempo não volta. A única solução é construir algo diferente a partir de agora. É perder o medo do novo, perder o medo de falar, de olhar para a frente.
A – Não é fácil.
R – Não, é dificílimo e, sinceramente, não sei nem se vou conseguir.
A – Por que você não tenta uma terapia.
R – Seria ótimo, mas agora não tenho uma segurança financeira que me permita esse luxo. Vou ter que apelar para a auto-terapia
A – Boa ideia. Você pode criar um blog e sair cuspindo teus pensamentos ali. É uma boa forma de expressão e dificilmente você vai ser julgado.
R – Pô, mas se alguém ler? Vou morrer de vergonha. Isso se ninguém me chamar de doido ou outras coisas piores.
A – Se chegar a esse ponto é porque você já é um sucesso. Aí vai ter é que escrever um livro sobre suas experiências.
R – Quero sucesso não, quero apenas me curar. Vou tentar um blog, sim.

Um comentário:

Renatinha disse...

Eita, que esse Rafael é sabido. Terapia é bom, mas melhor ainda é a consciência da necessidade e a vontade de se abrir, né? =*