sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Excludente de ilicitude

Foto: Pixabay.
Sob qualquer ângulo que você observe Jair Bolsonaro, ele é um escárnio. Não há um assunto sequer que aborde sem deixar transparecer uma completa falta de decência, de respeito, de decoro. É de um nível tão baixo que assusta o fato de ter amealhado quase 50 milhões de votos no primeiro turno e muito provavelmente no dia 1 de janeiro de 2019 subir a rampa do Palácio do Planalto, onde talvez fará o símbolo com as duas mãos que o ajudou a virar um mito para tanta gente: simular uma arma com o indicador e o polegar.

Mas se essa imagem realmente se concretizar não ache que ele a faz isoladamente. Aliás, não é ele quem faz, somos nós que estaremos fazendo. Porque Jair Bolsonaro não é artífice de nada, ele não criou nada. Ele é mais um que surgiu lá das entranhas da nossa sociedade. Apareceu, de um par de anos para cá para ser nosso catalisador.

A vitória de Bolsonaro não é a vitória da bancada da bala, do agronegócio miliciano e inescrupuloso, tão pouco do evangélico que poreja preconceito. A vitória dele é a nossa derrota como sociedade, é um jogar na nossa cara quem somos, o quão rasteiro chegamos. Passamos alguns períodos adormecidos com verniz, tentando calar nossos instintos grosseiros, excludentes e homicidas. Porque é isso que o brasileiro sempre foi, mas agora encontrou outro brasileiro que teve audácia e orgulho de sua moral rudimentar. O abraçou e o chamou de ‘mito’. Para uma imensa parcela de nosso povo, Bolsonaro se transforma naquilo que faz tremer a população que vive esmagada entre gangues do tráfico das periferias, o travesti escorraçado de casa: excludente de ilicitude. Ilustra muito bem o grito ameaçador de alguns torcedores do Palmeiras na estação do metrô após uma partida:

Não é ele quem vai matar, mas o simples fato de ele estar lá em cima, no posto mais alto do País. Uma figura que dá licença para o extermínio.

Nossa covarde sociedade sempre precisou de alguém para culpar ou cultuar. O candidato do PSL trouxe ambos no mesmo pacote. Nossa sociedade, que já mata uma mulher a cada duas horas e um LGBT a cada 19 horas agora tem no futuro presidente alguém que atiça nossos instintos primitivos com palavras (“Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí.”) e promessas (flexibilizar o estatuto do armamento para permitir ao cidadão comum a posse de arma de fogo). Nossa sociedade agora tem o herói que vai salvar o País do pântano da corrupção, esquecendo que a corrupção, aqui, é endêmica.

A sociedade brasileira que vai eleger Jair Bolsonaro não é a do “Somos todos Marielle Franco”. A verdadeira sociedade brasileira é, na verdade, os dois candidatos brutamontes que destruíram a homenagem à vereadora e foram eleitos, um para a Câmara Federal, outro para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e com a maior votação.

A violência, o preconceito, o esmagar das minorias, seja literal com barras de ferro e armas de fogo ou figurado nas políticas públicas, está no nosso DNA desde que os portugueses aqui chegaram para colonizar essa terra e escravizar os que aqui viviam. Para depois vir a inominável escravidão por mais de 300 anos até culminar em duas ditaduras com um intervalo de apenas 19 anos entre ambas.

Uma sociedade que se mata, se anula e se divide atavicamente não poderia eleger ninguém diferente de quem quer fazer a minoria se curvar às suas leis. Essa campanha eleitoral que pareceu durar cem anos vai coroar o grito dessa sociedade que pede licença para se matar mais, se anular mais e se dividir mais.

Por isso não nos espantemos mais, pois finalmente a alma do Brasil foi revelada. Agora sabemos quem somos, o que nos move e o quanto nos desrespeitamos sem saber. E, finalmente quando cairmos em nós, provavelmente será tarde demais e já seremos como o cavalo de Esopo, que para vencer o javali permitiu ao caçador colocar-lhe o arreio, a sela e as esporas.