sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Oração do morto de cada dia



Eu vou morrer de tédio, de calor, de frio, de tesão, de amor, de ódio, de paixão, de dor de dente, de dor de cabeça e de cotovelo. Eu vou morrer. Eu vou morrer de saudade... de quem veio e já foi. De quem foi sem ter sido notado. De quem sequer veio e talvez nunca venha. De quem veio, voltou e agora dá saudade de quando tinha ido. Eu vou morrer de felicidade, de tristeza. Vou morrer asfixiado pelas minhas próprias lágrimas, pelo meu próprio vício, pelo meu próprio travesseiro. Eu vou morrer cantando, sorrindo, esperneando, praguejando o bom e rezando pelo mau. Eu vou morrer de loucura só para não saber que já morrera há tantos anos sem encontrar um lugar. Eu vou morrer congelado, carbonizado, estrebuchando feito porco no matadouro. Eu vou morrer agarrado a um livro, a uma mulher, às paredes do meu quarto para que meus segredos venham comigo para sabe-se lá onde. Eu vou morrer fedido, cheiroso, ao som de uma ópera-rock, ao som de um samba e de uma marcha fúnebre. Eu vou morrer sem sentir nada, pois tudo que sentia acabou na hora da morte. Eu vou morrer de um pé na bunda, de um “eu te amo”, de um “foda-se”, de um “oxe”, de um “meu filho”, de um “meu pai”, de um “me ama”, de um “me esquece”, de um “a gente não combina”, de um “você errou”, de um “parabéns”. Eu vou morrer de um coice de cavalo, de uma mordida de cobra, de um ferrão de escorpião, de um atropelamento, de um tiro, de um beijo ou de um orgasmo. Eu vou morrer de ler, de escrever, de falar, de contar e recontar. De encontrar, de perder, de jogar fora, de esquecer, de lembrar. De comer, de beber, de cair, de levantar. Eu vou morrer de rir até faltar ar. Eu vou morrer afogado numa banheira, tropeçado numa calçada, escorregado num degrau de escada. Eu vou morrer na cadeia por ter matado o filho de uma mãe e um pai. Eu vou morrer por engano pra que minha mãe chore o choro de outra mãe. Eu vou morrer porque não nasci peixe, mas para que minhas cinzas sejam atiradas ao mar e lá eu fique eternamente. Eu vou morrer porque não fui jogador de futebol, piloto de fórmula 1, estrela do rock ou palhaço de circo. Eu vou morrer porque do filho não se fez-se o pai. Eu vou morrer para plantar uma semente na areia, uma estrela no céu ou um anjo da guarda. Eu vou morrer de gosto e de desgosto, de raiva, de prosa e de poesia.

Eu vou morrer de vida como morremos um pouco todo dia.

2 comentários:

Renatinha disse...

Uau! Não sei se digo parabéns...ou meus pêsames. =)

Tacyana Viard disse...

Lindo demais.