segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Quando se vive com os mortos se acaba entendendo que há um determinado dia em um determinado ano em que eles estão preparados para lhe dar as boas-vindas

M. F. sempre teve problemas para dormir. Talvez resposta a uma gravidez complicada e uma cirurgia de emergência ao nascer. Coisas que sempre o fizeram pensar a si mesmo como uma semente mal plantada que por destino ou maldição vingou. Eram sonos complicados, demorados sempre tendo como pano de fundo as sombras que seu quarto sem cortinas deixavam na parede em frente à cama. As sombras das árvores muitas vezes o assustavam como se simulassem alguém querendo invadir a casa. Espreitava, horrorizado, apenas com os olhos furtivos no limite inferior da moldura que dava para a rua.


E saía do quarto, entrava no banheiro, olhava-se no espelho, bebia água, mexia e remexia nas coisas como se aquele que lhe fora negado fosse aparecer do nada, dar-lhe boa noite e deitá-lo na cama. Chegou ao ponto de criar uma paranóia só para ter motivo de ficar acordado. Implicou com a luz do corredor. Estava sempre acesa. E a apagava. Ao deitar na cama, a certeza de que a deixara acesa. E voltava. Via que estava apagada e acendia novamente para depois apagar outra vez e deitar na cama. E toda essa acende-apaga-deita-levanta-acende-apaga se repetia até por uma hora como os riffs de guitarra que ouvia durante o dia.

O tempo passou e a luz finalmente apagou. Mas a noite, ou o sono, estes estavam sempre presentes. E a loucura da luz acesa tomou a forma dos mais variados sonhos. Eram imagens desconexas, embora quase sempre com personagens de sua vida real. Antes, esquecidos, eram sempre lembrados e, por isso, assustadores. E M.F. passou a procurar significados na vasta bibliografia à disposição. Fosse interpretação religiosa, filosófica, antropológica ou psicológica. Queria saber o que tanto lhe diziam. E chegava sempre à mesma conclusão: tudo. Ou nada.

Assustou-se a última vez quando viu, aterrorizado, três corpos, um deles o que parecia um idoso, varados, cada um na altura do peito por um pedaço de ferro como um arpão. Todos mortos e com o flagelo atravessando-lhes o peito e grudando-os à parede de seu quarto como enfeites mas sem que uma só gota de sangue escorresse.

O curioso era que um deles estava mais acima e os outros dois, cada um de um lado. Para ele, o formato de uma cruz. Seria essa sua versão para a Crucificação? Ou a expiação de um pecado? E M.F. só olhava com olhos tão fechados em seu sonho que sentiu até o frio mais frio que seu quarto novamente possuía. Não era mais penumbra, a imagem era clara, pois naquela hora o sol começava a nascer daquela forma preguiçosa que nasce no verão. Em meio a nuvens cinzentas que dão a falsa impressão de que será dia de chuva e hora depois explode naquele amarelo como apenas virasse uma página de livro.

Era cinza o tom do quarto. Então enquanto contemplava seus brinquedos. A porta se abriu entrou sua mãe da mesma forma abrupta que o fazia para flagrar-lhe em algo errado. Como se não existisse parede, ela ignorou os três corpos. E eles a ignoraram também. Desapareceram do nada. Ela gritou algo ininteligível com a mesma voz estridente que o chamava para casa quando criança. Arrancou do pé o velho chinelo marrom com sola grossa de borracha. Ignorou que diante de si estava um homem feito, quase vinte centímetros mais alto.

Ele também ignorou sua posição, físico e inteligência para argumentar. Esticou-se no colchão segurando firme com as duas mãos na borda e ofereceu-lhe as costas largas. Quando o chinelo atingiu o ponto mais alto antes de esborrachar-se sobre a pele acordou num sobressalto e viu o mesmo quarto cinza. Mas a parede continuava lá, branca e imaculada como sempre fora.

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