sábado, 11 de setembro de 2010

Complicadamente descomplicado (parte IV)




ROBERTO E REBECA

Os dias seguiram-se sem que nenhuma das duas partes desse o braço – nesse caso o mais correto seria o mouse – a torcer, embora um sempre soubesse da presença do outro. Não se bloquearam, uma prova de que os acordos sem palavras continuavam valendo. Ou seria o profundo respeito que nunca afirmavam sentir-se mutuamente mas sempre externavam na presença de terceiros em comum?

Ela terminou sim, indo à festa do tal Beto. Era amigo dela, que ele conhecia vagamente, muito mais pelas histórias contadas e agora sabe-se engolidas por ele com dificuldade. Na verdade, era um bom homem, o Beto, na verdade Roberto. Trabalhador, dedicado mas um tanto complicado na vida privada, fruto de um casamento terminado sob acusação de traição de parte a parte e tendo como complicador duas crianças cuidadosamente não poupadas em saber de tudo. Depois de três anos, caiu numa depressão enlutada, pois pouco os via e sempre se culpava pela perda. Mas era aquela tristeza que atrai mulheres um pouco menos severas, suficientemente inteligentes para discernir um pusilânime de um realmente sofrido. Trazia consigo um ar carente. Em suma, um prato cheio para Rebeca, mulher dura nas palavras mas de uma suavidade nas ideias atitudes que envergonhariam a mais bondosa das noviças.

Realmente, eles se aproximaram. Um, em busca da segurança que a outra passava. Outra, num homem que, na cabeça dela era raro, pois sensível aos anseios femininos. De início não houve nenhuma segunda intenção, apenas uma troca de experiências entre duas pessoas, que, embora jovens – iniciando a casa dos 30 anos – já mostravam cicatrizes da vida. Mas é aquela velha história: quanto mais você entra na vida da pessoa, mais ela vai te deixar entrar. E se a história for boa, sempre quer repetir o filme. Das trocas de experiências vieram as confidências, as confissões dos pecados, os ódios derramados pelos traíras ouvidos em silenciosas concordâncias. Mesmo quando uma atacava a máxima masculina de regar quantos hectares fossem possíveis com esperma e o outro reclamasse da modernidade que masculinava as mulheres e as deixava caçadoras demais para seu gosto romântico.

Se tais afirmações eram verdade, pouco importa. O que vale não é o que se diz e sim como se ouve. E os quatro ouvidos acreditavam no que lhes era colocado, sempre concordando e amplificando a voz do interlocutor, ainda que atacasse a própria raça. O resultado era óbvio. Renata estava diante de um homem que nunca vira. Ou melhor, já vira, mas que sempre passava por metamorfose com o avanço de dias, meses ou anos. Aquele, não. Ele ERA diferente, pois tinha uma postura semelhante à dela diante da vida e não o fazia com a intenção de arrastá para a cama. As conversas sucediam-se com assuntos inesgotáveis. E mesmo quando não estavam em companhia um do outro, seus nomes, ideias ou opiniões eram sempre compartilhadas com amigos ou parentes.

Rebeca: Olha, Carla, sem querer azedar tua história, não sei se esse cara tá te falando a verdade não, viu?
Luana: Por que?
Rebeca: Vocês se conhecem há muito pouco tempo e ele já fala de futuro, que você seria uma boa companheira simplesmente porque viu uma coincidência entre os dois? Tudo bem que não acho nada de mal em ser fã de Quentin Tarantino, coisa que até eu sou. Mas daí a visualizar uma vida a dois por causa disso é meio demais, né não?
Luana: É que ele discute Tarantino com uma paixão que nunca vi. Ele simplesmente fala TUDO que eu acho. Parece até que lê a minha mente!
R: Sei, sei. Mas vamos levar a teoria à prática. Suponhamos que vocês, lindos e apaixonados vão lá juntar os trapinhos e dividir o mesmo teto. Por acaso vão passar a vida inteira assistindo Tarantino?
L: Claro que não, né!
R: Pois então. Até concordo que a vida dá um belo filme, ou triste, ou cômico, dependendo de quem é a vida. Mas existem muitas outras coisas. Experimenta mudar de assunto. Falar de trabalho, por exemplo. De família! Isso, família é um ótimo assunto para você descobrir quem ele é. Presta atenção do que ele fala sobre os pais, avós, irmãos. Tenta levantar como é a relação dele com essas pessoas.
L: Você tá querendo que eu faça um interrogatório com o cara, é? Vou sentar ele numa cadeira, acender uma luz em cima da cabeça dele num quarto escuro e metralhar um monte de pergunta?
R: Não criatura, faz de um jeito sutil. Não é possível que você não consiga direcionar uma conversa. Usa algo que você viu num filme de Tarantino. A história da filha de Beatrixx Kido, por exemplo.
L: você faz isso?
R: Olha, converso muito sobre família e relacionamentos com Beto. Ele nunca se negou a falar disso ou daquilo. E olha que a história dele é bem complicadinha. Você sabe, já te falei.
L: Olhaí! A história dele é complicadinha e o nome dele é mel na tua boca...
R: Porque não é a história que importa, pelo menos muitas vezes. É a postura das pessoas diante da situação. Tem certas coisas na vida que você não tem controle, e olhe que são muitas. Como vai reagir a elas é o que conta. E existem milhares de maneiras de se reagir, você sabe. Beto, por exemplo, sofreu muito durante o casamento, mas passou por tudo de maneira digna. Eles eram muito jovens e a menina engravidou. Imagine que ela não queria casar e foi ele quem convenceu. Ele disse que era a única coisa que um homem digno faria. Ela se convenceu, ainda tiveram outro filho. Ele praticamente sustentava a casa sozinho e nunca reclamou porque ela teve que parar de estudar por causa das crianças. Depois começou a jogar na cara dele que foi por causa disso que ela não evoluiu na vida, que ele a sufocava, quando sempre fez questão que ela tivesse a vida de uma mulher normal.
L: Essa história não tá meio mal contada não?
R: Foi a mesma coisa que questionei a ele. Você sabe que não tenho pudor em perguntar certas coisas quando me dão um pouco de intimidade. Eles foram à faculdade onde ela estudou para reabrir a matrícula. Na última hora ela desistiu. Ele ainda tentou insistir, dizendo que dariam um jeito com as crianças. Teve que ouvir de volta: “Na última vez que você me convenceu, larguei tudo para ficar contigo” Né foda?
L: É, mas tu estás mesmo por dentro de toda intimidade desse cara, hein? Tô começando a achar que esse rolinho meio sem compromisso, como você tá dizendo, vai terminar virando uma coisa mais séria...
R: E eu lá tenho mais paciência pra homem? Ainda mais esses sequelados. Ele tem uma namorada que vai e volta toda vez que a lua muda de fase. Não sabe se gosta dela, se gosta de mim ou se no fim das contas não gosta é dele mesmo, o que eu acho mais certo.
L: Se não tem paciência pra homem daqui a pouco vai ser melhor você começar a experimentar mulher, ehehehehehe.
R: Olha, queria eu ter inclinação pra coisa, viu. Mas acho que ser sapatão é uma questão de dom, e esse eu não tenho. Já levei cantada de uma mulher uma vez e fiquei horrorizada. Só de imaginar... Argh. Revira até o estômago.
L: Mas se você falar desse jeito com alguém que não te conheça bem vai passar por lésbica, viu? É bom tomar cuidado...
R: Tô nem aí.
L: E o teu velho-novo-caso, como vai?
R: Quem, Walter?
L: E quem mais poderia ser?
R: Só de lembrar, começo a espumar. Tive uma discussão horrível com ele há dois dias. A coisa foi pesada, com direito a muito xingamento.
L: Os vizinhos ouviram os gritos de vocês?
R: Que gritos que nada. O quebra pau foi pela internet, no MSN. Ele veio dar uma vítima, com ciúme porque eu dispensei uma saída com ele. Falei da peça que a gente foi, Pão com Mortadela. É baseada num livro que ele adora. Eu disse que tinha gostado muito e iria novamente no fim do ano se ela voltasse pra cá. Ele aproveitou que havia outra apresentação ontem e me chamou. Eu disse que não iria porque era aniversário do Beto. Aí ele começou ironizando, dizendo que eu e o Beto tínhamos uma vibe legal ou algo assim. Fui desconfiando e cutucando mais ele, até que se soltou e mostrou o que todo homem é de verdade: possessivo e filho da puta.
L: Danou-se!
R: Ele mostrou como me vê. Disse que eu dou pra todo mundo, que falo dos caras que vivem atrás de mim pra provocar ele, que quero manipulá-lo. Só não me chamou de puta com todas as letras, mas o resto...
L: E você?
R: Quanto mais ele falava, mais eu dava corda. Disse que tinha dado pro Beto, tinha sido bom e que ele agia pior do que eu porque some, passa um tempão sem dar notícias, com certeza comendo a torcida do Flamengo inteira e depois me procura com a cara mais deslavada do mundo. Fico muito puta com isso!
L: Poxa, foi feio, hein. Vocês se conhecem há tanto tempo e nunca tinham brigado.
R: A gente tinha uns desentendimentos por conta de posturas diante da vida, gostos distintos, mas tudo dentro de um respeito. Eram conflitos de ideias não de um acusar o outro disso ou daquilo.
L: Mas deve ter valido a pena porque a festa do Beto foi boa?
R: Que festa? Não teve festa nenhuma. Falei de propósito porque já estava desconfiada dele. Sempre com uma perguntinha inocente aqui, outra ali. Ele quer saber de tudo que acontece comigo e ao mesmo tempo não solta nada. É mais trancado que xoxota de freira. Cutuquei e o bicho soltou de primeira.
L: Prima, quando eu crescer quero ser igual a tu!

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