terça-feira, 14 de setembro de 2010

Complicadamente descomplicado (parte VI - final)




W: Oi, Rebeca.
R: Ué, como você sabia que era eu?
W: Intuição, bruxaria, palpite, você escolhe.
R: Tu és muito do esquisito, às vezes. Olha, queria conversar contigo, estás muito ocupado agora?
W: Tô lendo, só. Posso conversar sim. Quer que eu vá na sua casa?
R: Quero, melhor ao vivo.
W: Toda convesa é sempre melhor ao vivo. Daqui a uma meia hora tô chegado.

Com os bairros de ambos não eram tão distantes, ele não demorou muito a chegar. Apenas tomou um banho rápido sem se preocupar em mostrar-se mais ou menos bonito para ela. Só o natural. Nem sapatos calçou. Foi com velha havaianas de guerra. Do outro lado, ela sentiu o mesmo. Como ele já frequenatara sua casa em diversas oportunidades, não o recebia mais com cerimônia. Quando Walter chegou a porta já estava aberta e ela, sentada no sofá. Riram, aquele velho riso amarelo de quem não tem prática em quebrar o gelo de cara. Ele ainda olhou pelos lados. Era a mesma casa dela que entrara e saíra tantas vezes aos primeiros minutos do dia. Ainda tonto de sono, a roupa amarrotada, o gosto azedo na boca. Paredes brancas, móveis simples mas de bom gosto. Nada demais, nada de menos. Tudo em seu devido lugar, nenhum cheiro, nenhum som diferente.

R: Chegou rápido.
W: A essa hora o trânsito tá sempre mais tranquilo.
R: Como você está?
W: Bem, e você?
R: Bem também.
W: Então, qual o motivo do convite?
R: Não imagina?
W: Bom, como nossa última conversa não foi das mais amistosas imagino que seja para colocar os pingos nos is. Tipo uma DR ou lavar a roupa suja, algo do gênero, acertei?
R: Acho que o “algo do gênero é o que se encaixa melhor.
W: Que seja.
R: Não gostei da nossa última conversa...
W: Nem eu. Acho que não precisávamos chegar àquele ponto.
R: Também acho.
W: É que você provocou e eu estourei...
R: Eu provoquei o quê?
W: Minha raiva, o que mais seria?
R: Não estou mais entendendo. A única coisa que eu fiz foi sempre responder o que você perguntou com a maior sinceridade que me foi possível.
W: Sinceridade que pode ter uma medida melhor.
R: Então você prefere meias-verdades?
W: Claro que não. Não é o conteúdo, é a forma. Você nunca precisa vir falando algo que gosta de rola, que teve isso e aquilo com fulano e beltrano. A maneira que faz é jogando na minha cara como se eu tivesse alguma culpa nisso. Como se você fizesse isso porque eu não fiz ou não quis algo. E não quero levar a culpa sobre algo que não tenho e provavelmente nunca terei controle.
R: Quem provocou primeiro foi você, com suas colocações irônicas sobre a minha vida. Parece que ela é um prato cheio pra você. Qualquer colocação que eu faça, principalmente se for sobre homens, você sempre vem zombando, ironizando ou tentando diminuir o que eu faço ou o que aconteceu. Como se não tivesse importância, entende?
W: Olha, de tudo isso que você falou aí, só concordo com o “se não tivesse importância”. Pode ter certeza que o que você faz ou deixa de fazer não me altera em nada.
R: Rárárá. É piada, né? Altera, sim, meu filho, e muito. Sabe por que? Porque fere seu orgulho de macho. Você tenta dar uma de avançadinho, de descolado, mas no fundo é machista e preconceituoso. Aliás, como a maioria da sua raça. Quer todas as mulheres aos seus pés, fazendo sempre suas vontades. Quando as mulheres insistem em dizer que vocês homens nunca viram adultos é disso que falamos. Todos vocês têm complexo de Édipo exacerbado.
W: Inversão de valores.
R: Hã?
W: Isso que você está fazendo é inversão de valores. Tudo que você acusou a mim, e à raça masculina é você quem faz. E esse seu ar provocador, o jeito de dançar, o sorriso fácil e o jeito de mexer o cabelo são o que, por acaso?
R: Meu jeito, ora essa!
W: Não. Você calcula tudo. Você faz tudo friamente para chamar a atenção. Você tem namorados, amantes, peguetes, o nome que você queira dar a esses caras, por esporte, por brincadeira. Até sua maneira de dispensar algum, e eu já vi, é tão discreta que sempre o cara volta. Você dá sempre uma esperança de que pode. É um fora olhando de lado. Uma sensação de manipulação. Você gosta de manipular, talvez seja uma forma de mostar onipotência.
R: Você tá é doido. Nunca fiz isso. E se dou fora de uma forma mais contida é porque sou educada. Não precisa sair dando coice em ninguém.
W: Precisa sim, sabe por quê? O ser humano é burro. Os desejos que nos movem são completamente burros. Só entendemos a linguagem da porrada, até a Bíblia, que se diz a palavra de Deus já mostrou isso. Quando Ele disse a Adão e Eva que não deveriam comer o fruto da árvore proibida, o que aconteceu? Ela foi lá e comeu do mesmo jeito e ainda ofereceu a ele, que mesmo tendo consciência do erro da mulher, foi lá e fez a besteira. Ali começava a história de dominação, de manipulação das mulhres sobre os homens até culminar aqui, agora, neste apartamento. O tempo passou mas o recado de Eva continua aí, no DNA de vocês mulheres.
R: Essa teoria toda só pra provar que eu sou manipuladora?
W: Sim, você não percebe, não faz deliberadamente. Está tudo aí dentro já formado. Se fosse um crime, seria culposo. Tenho certeza que você não faz com intenção. Acredito que seja hormonal.
R: Hormonal uma ova. Quem quer inverter os valores é você. Quer que eu seja seu capacho e não sou. Eu não me dobro às suas vontades e você agora tenta fazer isso me diminuindo.
W: Não quero nem nunca quis que você se dobrasse às minhas vontades. Admiro e sempre admirei seu espírito independente, inclusive já lhe disse isso em outras oportunidades. Você só não precisa jogar comigo. Somos grandinhos demais pra isso, não acha?
R: Acho, mas e você não joga, não?
W: Como eu jogo?
R: Você chega a passar semanas sem me ver e volta do nada querendo que eu te dê atenção e outras coisinhas mais...
W: E você por acaso me procura? Se eu me afasto e você concorda é porque está querendo umas férias de mim, ver outras coisas, outras pessoas.
R: E você não faz o mesmo não?
W: Às vezes sim, às vezes não. Não sigo regras. Minha relação com você não tem isso de: 'Agora ela me deu um tempo vou fazer isso e aquilo'. Nada a ver. Na boa, as coisas são tão simples e nós é que ficamos complicando.

O mais estranho em toda aquela conversa é que as vozes eram brandas diante de tantas acusações iniciais. Os dois conversavam como velhos amigos ou até namorados trocando ideias numa noite agradável de fim de inverno. Intimamente, sentiam-se mais leves. Já sentavam lado a lado no sofá, as pernas quase se tocando. Mas não havia desejo, eletricidade, apenas cumplicidade, algo que sempre houvera mas em algum momento escoara pelos beijos, pela falta de ar dos desejos saciados.

R: Eu não me sinto complicando nada. Você é que complica...

Ele adotou um tom paternal.

W: Tá vendo? Você quer sempre ter a razão, ser a dona da última palavra. Não ter a última palavra não é sinal de fraqueza, quando você vai entender? Aliás, numa relação de dois, o melhor é que a última palavra seja dos dois. A velha negociação ganha-ganha.

Ela não escondeu um ar de riso diante da observação do companheiro e identificou na hora o tom aconselhador.

R: É talvez eu seja um pouco durona mesmo.
W: É bom que seja. Mas endurecer sem perder a ternura, como diria o velho e bom Che.
R: E agora, o que é que a gente faz? - perguntou, rindo.
W: Aí você tá querendo demais, não sou tão inteligente assim. A mulher aqui é você!



PS: Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações terá sido mera coincidência.

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